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Fonte: http://www.releituras.com
A decadência do Ocidente
O doutor ganhou uma galinha viva e chegou em casa com ela, para a alegria de toda a família. O filho mais moço, inclusive, nunca tinha visto uma galinha viva de perto. Já tinha até um nome para ela – Margarete – planos para adotá-la, enquanto ouvia do pai que a galinha seria, obviamente comida.
– Comida?!
– Sim, senhor.
– Mas se come ela?
– Ué. Você está cansado de comer galinha.
– Mas a galinha que a gente come é igual a esta aqui?
– Claro.
Na verdade o guri gostava muito de peito, de coxa, de asa, mas nunca tinha ligado as partes do animal. Ainda mais aquele animal vivo ali no meio do apartamento.
O doutor disse que queria a galinha ao molho pardo. Há anos que não comia uma galinha ao molho pardo. A empregada sabia como se preparava uma galinha ao molho pardo? A mulher foi consultar a empregada. Dali a pouco o doutor ouviu um grito de horror vindo da cozinha.
Depois veio a mulher dizer que ele esquecesse a galinha ao molho pardo.
– A empregada não sabe fazer?
– Não só não sabe fazer, como quase desmaiou quando eu disse que precisava cortar o pescoço da galinha. Nunca cortou um pescoço de galinha.
Era o cúmulo. Então a mulher que cortasse o pescoço da galinha.
– Eu?! Não mesmo!
O doutor lembrou-se de uma velha empregada de sua mãe. A dona Noca. Não só cortava pescoços de galinhas, como fazia isto com uma certa alegria assassina. A solução era a dona Noca.
– A dona Noca já morreu – disse a mulher.
– O quê?!
– Há dez anos.
– Não é possível! A última galinha ao molho pardo que comi foi feita por ela.
– Então faz mais de dez anos que você não come galinha ao molho pardo.
Alguém no edifício se disporia a degolar a galinha. Fizeram uma rápida enquête entre os vizinhos. Ninguém se animava a cortar o pescoço da galinha. Nem o Rogerinho do 701, que fazia coisas inomináveis com os gatos.
– Somos uma civilização de frouxos! – sentenciou o doutor.
Foi para o poço do edifício e repetiu:
– Frouxos! Perdemos o contato com o barro da vida!
E a Margarete só olhando.
(LUIS FERNANDO VERÍSSIMO. A mãe de Freud.
Porto Alegre, LP&M, 1985, pp. 21-22.)
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