12 de dezembro de 2008

Marina Colasanti


Marina Colasanti nasceu em 1938 em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália. Em 1948 mudou-se para o Brasil. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista. Em 1968, lançou seu primeiro livro, Eu Sozinha; Depois deste já publicou mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, foi lançado em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão, e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você? Dentre suas obras estão: E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui entre nós, Intimidade pública, Zoológico, A morada do ser, A nova mulher, Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Gargantas abertas, Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia. Nelas, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant’Anna.

wikipedia





Eu sei, mas não devia



Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

"Eu sei, mas não devia" , Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996



A Moça Tecelã


Uma narrativa fantástica, onde num mundo imaginário, uma jovem usa o tear para tecer sua vida. Tece guiada por sua imaginação. Tem tudo o que deseja, até que sente a necessidade de um marido. Tece o marido do jeito que o idealizou. Com ele tem um romance, sonha em ser feliz e constituir uma família. Porém, ele age contrariamente a seus anseios. Ela se deixa dominar e ele passa a explorá-la , até levá-la à exaustão. O marido enclausura a esposa, que confinada, vê-se obrigada a satisfazer seus caprichos e a se dedicar a inúmeros afazeres domésticos, a ponto de desistir da maternidade. Triste e isolada, recorda-se de sua vida simples, mas em liberdade. Reage. Como quem planeja cometer um crime, ela planeja sua destruição. Espera que ele adormeça, executa seu plano. Numa atitude reacionária e de transgressão, puxa o fio e sozinha, destrói o companheiro e reconquista sua liberdade.


Entrevista com Marina Colasanti - Parte 1


tbordignon@bol.com.br

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